A voz de Deus


Alcione Araújo

   “Todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso que se carece principalmente de religião para se desendoidecer, desdoidar”, disse Guimarães Rosa pela boca de Riobaldo, no Grande Sertão. Talvez o Deus alegre revelado a Baruch Spinoza nos desdoide. Autor da ética da alegria, Spinoza alinha-se a Leibniz e Descartes na filosofia moderna. Para ele, Deus e Natureza são o mesmo ente, e a Bíblia, metáfora além da razão. Avesso a dar aulas, viveu de polir lentes, e morreu aos 44 anos. Inspirou teólogos, filósofos e poetas. Eis sua recriada fala de Deus:
   “Para de rezar e bater no peito! O que quero é que saia pelo mundo e desfrute sua vida. Que goze, cante se divirta e usufrua de tudo o que fiz para você. Para de ir a esses templos lúgubres, frios e escuros, que você construiu e crê ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, bosques, rios, lagos e praias, onde vivo e expresso meu amor por você. Para de me culpar da sua vida miserável: nunca disse que há algo mau em você, que é um pecador, que sua sexualidade seja ruim! O sexo é um presente que lhe dei e com o qual pode expressar amor, êxtase e alegria. Não me culpe pelo que lhe fizeram crer. Para de ler supostas sagradas escrituras, que nada têm a ver comigo. Se não me lê num amanhecer, numa paisagem, no olhar de seus amigos, nos olhos de seu filho, não me achará em livro algum! Confie em mim e deixe de me pedir: vai dizer como fazer meu trabalho? Para de ter medo de mim. Não o julgo, não o critico, não o irrito, incomodo, ou castigo. Eu sou puro amor.” 
   “Para de me pedir perdão. Nada há a perdoar. Se Eu o fiz, dotei-o de paixões, de limitações, prazeres, sentimentos, necessidades, incoerências, livre-arbítrio, como posso lhe culpar se responde a algo que pus em você? Como lhe castigar por ser como é, se sou quem o fez? Crê que criaria um lugar para queimar meus filhos que não se comportem bem, por toda a eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?”
   “Esquece mandamentos e leis; são ardis para manipular e controlar, que só criam culpa. Respeita o próximo e não faça o que não queira para si. Só peço que preste atenção à sua vida, que seu guia seja o estado de alerta. A vida não é uma prova, um degrau, um ensaio ou um prelúdio ao paraíso. A vida é o que há aqui e agora, o que você precisa. Fiz você livre. Não há prêmios, castigos, pecados ou virtudes. Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno.” 
   “Não posso dizer o que há após a vida, posso sugerir: viva como se não o houvesse. Como se esta fosse a única chance de gozar, amar e existir. Assim, se não há nada, terá usufruído da chance que lhe dei. Se houver, não vou indagar se se comportou ou não. Vou indagar se gostou, se se divertiu, do que mais gostou, o que aprendeu. Para de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar – e me sinta em você, ao beijar a amada, agasalhar sua filhinha, acariciar seu cachorro, se banhar no mar.” 
   “Para de me louvar! Que Deus acredita que seja? Chateia que louvem, cansa que agradeçam. Sente-se grato? Prove: cuide de si, da saúde, dos amigos, do mundo! Sente-se olhado, surpreso? Seja alegre, é um jeito de me louvar. Para de complicar e repetir o que dizem de mim. A única certeza é que você está aqui, vivo, e o mundo é cheio de maravilhas. Para quê milagres? Para quê explicações? Não me procure fora! Não vai me achar. Procura dentro de você, onde estou, tocando-o.”
   Einstein disse sobre sua fé: “Creio no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo que existe”. Esse Deus, que quase ouço, pode nos desdoidar.

Alcione Araújo
publicado no Estado de Minas, caderno Cultura, 24 de setembro de 2012, página 8

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