Festa do Rosário: Ato de resistência da cultura negra


Márcio Almeida

     Com o legado científico de Carlos Chagas, a Festa do Rosário é a referência de maior importância cultural de Oliveira. A historiadora fluminense e doutora Fernanda Pires Rubião, na tese As lutas políticas dos congadeiros da cidade de Oliveira (2013) assinala que a análise sobre o Congado parte da realização da festa popular como forte caminho que permite a construção de identidade dos negros, a entender os conflitos sociais, os diálogos que se operam entre os “de baixo” e os “de cima”, além de constituir num canal de reivindicação política para os agentes que a praticam. Sabe-se que o 1º Estatuto da Irmandade de N.S. do Rosário data de 1860, que esse já regia o espaço de autonomia dos escravos, criando entre eles laços de solidariedade e sociabilidade. Através da festa os congadeiros, que hoje são cerca de 900 componentes, rememoram e recriam suas origens africanas, homenageiam seus santos de devoção, e coroam seus reis e rainhas, com destaque para o Rei Congo, representante de Chico Rei. Angel Rama, citado pela pesquisadora, considera que a cidade letrada “compunha o anel protetor de poder” de Oliveira, determinado por religiosos, administradores, educadores, escritores, profissionais liberais, “todos que manejavam a pena”, e esta em Oliveira era formada pelos agentes eclesiásticos, o poder público e o jornal GAZETA DE MINAS que determinavam as normas em relação aos participantes da festividade. A delimitação da pesquisa de Rubião se dá com os chamados Leonídios - Antonio Eustáquio e Pedrina dos Santos, filhos do antigo capitão Leonídio dos Santos, cuja escolha se deu por 3 fatores: “a diversidade de ternos que saem do quartel desses irmãos (moçambique de N.S. das Mercês, o de N.S. do Rosário e congo de N.S. do Rosário); a forte influência do significado político da festa e por seus familiares participarem há muitas gerações dos festejos congadeiros.” Em 1929, a antiga igreja do Rosário foi demolida e em seu lugar ergueu-se a igreja de N.S. de Oliveira, fato que levou os congadeiros a reestruturarem sua festividade diretamente relacionada aos embates com os representantes eclesiásticos e a Prefeitura Municipal. A propósito, matéria publicada na GAZETA DE MINAS em 20 de outubro de 1918 destaca haver então contenda entre a Festa do Rosário e a diocese, apesar de o festejo ser valorizado e respeitado pela população.
     Em 1931, a festa foi realizada, não obstante sua proibição pelas “Determinações das Conferências Episcopais” de 1927, o mesmo tendo ocorrido em 1945, sem contudo considerar a tradição com preconceito. Fato é que a festa deixou de acontecer durante o período de 1900 a 1950, não se podendo, no entanto, diz Rubião, precisar em que anos foi a festa paralisada. O que se afirma é que a suspensão do festejo se deu “pelo medo da repressão policial, originária da ordem diocesana”. Mesmo sob proibição, a festa voltou em 1950, mediante licença conseguida pelo capitão Geraldo Bispo dos Santos, um baluarte histórico da Congada em Oliveira, hoje representado pelos netos Geraldo e Heloísa dos Santos. Em 1951, o vigário monsenhor Leão Medeiros Leite publica na GAZETA DE MINAS artigo no qual diz que a Festa do Rosário deveria ter ficado restrita ao tempo do cativeiro, “num ambiente de negros escravos e de gente simples e ignorante.” A igreja católica queria se afastar literalmente da Festa do Rosário. A primeira referência da realização da festa com missa campal deu-se em 1964, na Praça Manoelita Chagas. Na década de 1970, a missa era celebrada na Igreja dos Passos, mas, segundo a capitã Pedrina dos Santos, “não havia elementos que ajudassem a lembrar da história dos negros do Rosário.” Na década de 1980, a solenidade era realizada do lado de fora da igreja do Alto S. Sebastião, em cujo bairro mora a maioria dos congadeiros. Atualmente, diz a pesquisadora, o palanque na Praça XV “representa o altar da antiga igreja.” Na década de 1990, a missa passou a ser definitivamente celebrada no interior das igrejas, agora com novos ritos, celebração com suas próprias músicas, instrumentos e danças, caracterizada como Missa Conga e a presença do Lamento Negro, sob iniciativa da capitã Pedrina dos Santos. É preciso lembrar que sempre foi conflituosa a relação da igreja católica com os congadeiros, inclusive para o trabalho de pesquisadores na obtenção de informações sobre a festividade. O bispo dom Miguel, afirma Rubião, alegou em entrevista não haver na documentação da igreja nada sobre a relação da igreja com o Congado. Segundo os congadeiros, porém, o espaço da antiga igreja do Rosário lhes foi “roubado.” No século XXI, demarca Rubião, a GAZETA DE MINAS utiliza o Congado para denunciar o mito da democracia racial e o segregacionismo dos participantes da festa, registrando a questão em seu caráter político e contestatório vivenciado por negros e congadeiros. Por ser mais flexível e humanitária, digna e justa, razoável e salutar, hoje a igreja católica se posiciona de modo definitivo sobre a Festa do Rosário,que afinal tem caráter religioso, cultural e histórico. E talvez seja, no gênero - com todo mérito - a maior manifestação folclórica do país.

Márcio Almeida
Publicado no jornal Gazeta de Minas, pagina 2, em 02 de setembro de 2018.

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