Nos geraes de Lassance


Carlos Herculano Lopes

    Nos geraes de Lassance, numa fazenda banhada pelo Rio das Velhas, por onde andaram dando umas voltas a convite de um casal amigo, o homem e sua mulher perceberam que, pouco depois das 5h da manhã, as seriemas começam a cantar. É um trinado triste, meio melancólico, mas que, devagarinho, como uma suave carícia, vai entrando coração adentro. Apurando-se os ouvidos, dá para distinguir também, entre vários outros, o canto de dois joões: o de barro, àquelas horas já na labuta diária buscando argila para fazer sua casinha, e o graveteiro, que junto à companheira, com certeza, está trançando, um no outro, galhinhos para construir seu ninho, projetado com engenho e arte, para enganar os predadores.
    Nos geraes de Lassance, onde a Lua na sua plenitude é a mais bonita de todas, como já escreveram os poetas, o homem e sua mulher ficaram sabendo que as seriemas, se insistem no seu trinar, é porque estão chamando chuvas e trovoadas. “Todo mundo as protege, porque comem cobras e limpam os pastos”, disse-lhes um velho peão da fazenda, ensinando também que os cupins, quando começam a voar ao redor das lâmpadas, é porque a água virá com força, para regar as veredas do sertão. Foi também naquelas paragens – contou o homem, sem disfarçar o orgulho –, que Carlos Chagas, ainda moço, conseguiu identificar o protozoário Tripanosoma cruzi, causador da terrível doença, que fazia tantos estragos.
Carlos Chagas andou por aqui, onde deixou tantas histórias.
    Mas se a cidade tem esse nome, que a princípio pode soar meio estranho, foi dado em homenagem a Ernesto Antonio Lassance Cunha, que, no início do século 20, viria a ser o engenheiro-chefe da construção da estrada de ferro que, nos anos seguintes, levaria progresso e movimentaria aquela terra. Até então, não passava de um arraial perdido na imensidão de Minas. “Na mesma época”, prosseguiu o peão, entre um dedinho e outro da boa, “Carlos Chagas andou por aqui, onde deixou tantas histórias.”
    Foi ainda ali, nos geraes de Lassance, vendo-se ao longe a Serra do Cabral, que o homem e sua mulher (esta nunca havia pescado), conseguiram fisgar alguns piaus e bagres com a ajuda de um menino, o Diguinho. Ele que, na maior boa vontade, ajeitou as iscas: minhocas, apanhadas no quintal, entre inhames e bananeiras, e tanajuras, que estavam guardadas numa garrafa pet e conservadas no álcool. “São dessas que os piaus gostam demais”, ensinou-lhes o garoto, que, depois da pescaria, aproveitou para dar um mergulho no “das Velhas”. É assim que os moradores dali, de um jeito carinhoso, costumam chamar o rio.
    Foi nos geraes de Lassance, bem acomodados no antigo casarão da fazenda, que noite adentro o homem, sua mulher, o casal amigo, Diguinho e o velho peão boiadeiro comeram os peixes, preparados com mãos de fada pela tia Luísa. Bem ao fundo – tal qual o canto das seriemas – o som da viola de Rodrigo Delage dava a todos a sensação de que aquele momento, como poucos outros, só a eles pertencia.

Carlos Herculano Lopes
Publicado no jornal Estado de Minas, Cultura, pagina 6, em 31 de agosto de 2012

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