O Cai-n'água, em Oliveira
O Dominó, um personagem encapuzado lúdico, crítico, romântico, e simultaneamente assustador e receptivo, é o arauto, o anunciador do Carnaval de Oliveira, que comemora 150 anos em 2016.
Essa curiosa figura carnavalesca tem origem em duas festividades religiosas bastante antigas e tradicionais: o Triunfo Eucarístico (Ouro Preto/1733) e o Áureo Trono Episcopal (Mariana/1748). Um século depois, o Dominó foi incorporado às festas populares. A figura é remanescente da concepção original do farricoco da procissão de Braga (Portugal) e de Sevilha (Espanha).
Segundo o pesquisador Marcio Almeida, já em 1549 o padre Manuel da Nóbrega relata em uma carta a procissão que se fazia no Brasil, "mui solene", quando havia "danças e invenções à maneira de Portugal”.
Em 2013 o bloco Cai-n'água foi registrado como Patrimônio Imaterial do município, um reconhecimento da importância desta manifestação cultural.
Cai-n’água: origens de uma tradição centenária
por Márcio Almeida
Ao contrário dos que consideram obscura a origem do Cai-n’água, ou dele fazem uma análise ao rés do chão, imediatista e resultada de “recortagem”, pode-se afirmar originar ele do entrudo, portanto de uma procedência sacra. Entrudo = intróito, oração que principia a missa católica.
O Entrudo, transcriado no Brasil desde o período colonial, tem origens ideológicas européias, com raízes porém tão antanhas quanto a Antigüidade Clássica dos cultos dionisíacos e as manifestações em que o uso da máscara e da indumentária festiva justificava a persona em função simultaneamente lúdica e crítica do pathos social.
Por ser o entrudo oriundo do ritual religioso, tudo leva a crer ser o Cai-n’àgua um simulacro descendente do rompimento profano da representação triunfalista. Antes de tornar-se a maior tradição centenária do carnaval de Oliveira, sobretudo com esta denominação típica, o Cai-n’água transfigurou-se em variações, adaptando-se no país conforme circunstâncias sócio-antropológicas regionais.
Ou seja: para tornar-se de fato uma tradição oliveirense, o Cai-n’água teve de justificar-se no tempo como uma realidade da representação religiosa que, uma vez rompida em sua forma ritualística, forjou sua caracterização como bufonaria farsesca, além de ter sido mantido no espaço regionalizado de sua projeção com as mesmas características de sua natureza intrigante, de sua cultura do esgar e de sua cosmovisão paródica.
Para romper como manifestação popular e impor-se carnavalescamente como um símbolo, o Cai-n’água teve também de fazer objeto de resistência à chamada liminaridade a qual, segundo Victor Turner, significa viger o processo proposto por Mikhail Baktin, que resulta da revogação temporária das tradicionais barreiras hierárquicas, sobretudo religiosas e do poder constituído.
A isto deu-se o nome de mésalliance, onde se misturam o sagrado e o profano, o alto e o baixo, o grande e o pequeno, o sábio e o tolo, o rei e o escravo, estabelecendo-se o livre contato próprio da praça carnavalesca, suspensas que sejam as leis, restrições, formas de medo e reverências, como analisa Paulo Bezerra.
Por isso, justifica-se a contista Zilah Corrêa de Araújo escrever que “dominó esconde feiúra, velhice, banha avolumando nos quadris, falta de jeito, cara, corpo, solidão, cabeça e o que anda dentro dela.”
As primeiras referências ao proto Cai-n’água advêm, religiosamente do padre Antônio Vieira, que analisa num de seus célebres “Sermões” a questão do entrudo. De interesse mais popular, o Cai-n’água se materializa, historicamente, mas ainda atrelado à condição religiosa, através da projeção do mundo barroco em Minas, com a realização, em 1733, em Ouro Preto, do “Triunfo Eucarístico”, que assinala, conforme opúsculo publicado em Lisboa, no ano seguinte, por Simão Ferreira Machado, a inauguração da nova matriz de Nossa Senhora do Pular, na antiga Vila Rica.
Pesquisa de Affonso Ávila dá conta de que cerca de um mês antes da consagração do novo templo “arautos mascarados saíam à rua para anunciar o próximo e importante acontecimento” e, citando Ferreira Machado, alude que “servirão à festividade deste dia muitas danças e máscaras, ricamente vestidas”.
Analista erudito, Ávila diz também que naquela festividade “estabelece-se, nos desfiles descritos e que precedem a procissão de 24 de maio, uma conotação de féerie coreográfica como o moderno carnaval carioca.”
Também em grande evento barroco, o “Áureo Trono Episcopal”, de 1748, quando da posse de Dom Frei Manoel da Cruz, como bispo da diocese de Mariana, a presença do arauto se fez presente com “várias máscaras, diferentes nos trajes e na jocosidade dos gestos, os quais em graciosos bandos, e poesias, que espalhavam ao povo, avisavam por célebre estilo a futura festividade.”
Outra importante referência da índole primária religiosa do atual Cai-n’ água é apontada pelo professor oliveirense Múcio Lo-Buono, conhecedor das tradições católicas. Segundo ele, a origem do Cai-n’água poderia advir dos “encapuzados” das procissões de Sevilha, que mantém, ainda hoje, a mais genuína representação da Semana Santa européia.
Por que cai-n'água?
Entrudo quer dizer também antigo folguedo carnavalesco, que consistia em lançar água, farinha, tinta etc, uns aos outros entre foliões.
Daí que quem entruda, Cai-n’água. E a tradição Oliveirense tem origem carioca. Diz José Nava que, em 1865, lojas do Rio de Janeiro vendiam ou alugavam dominós, “titis”, “chicards”, “debardeurs”, “folichons”, “husards” etc, como também “saco de talagarça, bisnagas de cheiro, cabacinhas de cera com água aromática (precursoras do lança-perfume), limões de cheiro e cartuchos de farinha de goma.” E descreve assim a forma como funcionava, há mais de século, o entrudo que veio originar em Oliveira o Cai-n’água: “Junto das janelas tinas d’água, bacias e alguidares, balaios d’ovos de gema, cestos de cabacinhas de cera e sacos d’alqueire cheios de farinha de goma. Os transeuntes recebiam de volta com o aguaceiro petardos variados, numa chuva implacável de tomates e hortaliças e legumes (…) entre chalaça grossa e facécias violentas.As próprias sinhás-donas e iaiás maquinavam garotices inéditas e, sem cerimônia, metiam nas tinas d’água um cidadão todo, chapéu, dignidade e botas.”
Graciliano Ramos registra que “papangus vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias”, e que “mascarados solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros, inconvenientes.”
Antes, os brasilianistas Fletcher e Kidder, que visitaram o país em meados do século 19, registraram que “durante o entrudo as pessoas se saudavam com chuveiros de laranjas e ovos, isto é, com bolas de cera em forma de laranjas, limões e ovos, cheios de água. Esse jogo era feito tanto na alta roda como na classe inferior, fora e dentro de casa. Tão grandes eram realmente os excessos que a polícia acabou por proibir o entrudo, a partir de 1854.”
O primeiro registro do Cai-n’água Oliveirense foi publicado na edição n.º 128 da “Gazeta de Minas”, em 9 de fevereiro de 1890, dizendo que rapazes mascarados “considerando que o entrudo é um divertimento selvagem” e que “há muito pano para manga”, resolveram “formar um club carnavalesco provisório para festejarem os três (sic) dias de folguedo consagrados ao deus Momo.”
Por “entrudo”, como se lê na edição do mesmo jornal, em 17 de fevereiro de 1901, o colunista D. Fuas registra ter sido “costume antigo cá na terra”, quando “um grupo de moços procura entrar em uma casa que tenha moças e, uma vez dentro da casa, trata de arranjar água com que ensope os pobres que, por sua vez, se podem, pagam na mesma moeda.”
José Demétrio Coelho em seu livro “Recordações de Oliveira”, p.23, registra que o entrudo “dava gosto e sensação” com “uma batalha entre combatentes de ambos os sexos que, de limões em punho e no acesso da luta, corriam pelas ruas num alarido louco.”
E acrescenta em sua obra de 1950: “As portas trancavam-se com estrépito, ouviam-se gritos histéricos e aflitivos mesclados de sentenças de punição e revanche. Causava júbilo imenso ver-se um paciente conduzido para um banho em regra.”
José Demétrio Coelho coleta também que mesmo depois de o entrudo ter sido proibido pelo então delegado Pinto Machado, coube a Francisco Coelho de Moura (Dr. Chiquinho), para vingar-se do esgar do carro alegórico intitulado “Enorme”, que criticava o rapto do diploma de senador a ele conferido – manter o entrudo por algum tempo, “lá da janela do seu sobrado, com as portas bem trancadas, de onde derrubava água e mais água nos incautos transeuntes.”
A expressão “Cai-n'água” originou-se deste folguedo carnavalesco.
[ fonte ]
CAI-N’ÁGUA
EU SOU ESSA MÁSCARA, ESSE CHITÃO,
E MEU ROSTO, AMIGO (A), É A CARA DO POVO.
É UMA MISTURA DE DESESPERO COM INFLAÇÃO,
MÃOS DESEMPREGADAS E FOME, NADA DE NOVO.
SOU O MISTÉRIO QUE NUNCA SE EXPLICA
POR TAL DÚVIDA CÁ DENTRO E LÁ FORA;
O QUE FALA O INDEVIDO, O TAPA DE PELICA,
UMA CANDINHA ROUCA, O QUE FAZ HORA.
SOU ALGUMA TIMIDEZ ASSANHADA,
BRUXO DE CRIANÇAS E MÁGICO,
POIS O MEU AVESSO É FOSSA E NADA,
POIS O MEU ESPELHO É JOSTA E TRÁGICO.
MEU ROSTO DE POVO É MUITO ASCETA,
E ESSE CAPUZ É VELHO FOLIÃO,
ELE TEM O RUMO DAS DIRETAS,
ELE QUER LIBERDADE, TERRA E PÃO.
SOU AQUELE TANTO QUE CAI-N’ÁGUA
DE SUOR, DA CHUVA E DA CACHAÇA,
PORQUE É ASSIM QUE PURGA A MÁGOA
O POVO DA FOLIA E DA DESGRAÇA.
EU SOU ESSA MÁSCARA, ESSE CHITÃO,
FOLK DE OLIVEIRA, CRÍTICA DOS LODOS,
CAI-N’ÁGUA, PATO, RUA DO CORDÃO,
E, POR SER ANÔNIMO, ME DECLARO TODOS.
[ fonte ]
com fotos de Sidney de Almeida
Fontes pesquisadas:
Bloco de Oliveira completa 150 anos
[ https://portalcentrooeste.com/bloco-de-oliveira-completa-150-anos/ ]
Minas Gerais é berço de importantes e centenárias manifestações carnavalescas
[ http://agenciaminas.mg.gov.br/noticia/minas-gerais-e-berco-de-importantes-e-centenarias-manifestacoes-carnavalescas ]
Cai-n’água: origens de uma tradição centenária
[ https://simaopessoa.wordpress.com/2006/11/28/cai-nagua-origens-de-uma-tradicao-centenaria/ ]
Márcio Almeida, o assassigno das palavras
[ https://simaopessoa.wordpress.com/2006/11/28/marcio-almeida-o-assassigno-das-palavras/ ]