Carlos Chagas: O Grande Cientista Oliveirense!

Dr. Carlos Chagas

Biografia
Trecho (com pequenas adaptações) do livro "Oswaldo Cruz & Carlos Chagas - O nascimento da Ciência no Brasil", de autoria de Moacyr Scliar.


Um ilustre discípulo de Oswaldo Cruz: Carlos Chagas

A infância

          Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas ou, mais simplesmente, Carlos Chagas nasceu aos 9 de julho de 1878, na fazenda Bom Retiro, em Oliveira, Minas Gerais. Descendente de uma tradicional família mineira que produzia café e gado, criou-se ali, numa grande casa em estilo colonial, saboreando tutu, feijão-tropeiro e pão-de-milho; doce de leite e queijo fresco; goiabada... Oliveira era uma cidade pequena mas com uma forte tradição de cidadania; o ensino público era muito desenvolvido, havia uma pequena mas atuante imprensa, representada pela Gazeta de Minas. A família de Carlos Chagas tinha marcante presença na vida cultural da cidade. Carlos, que cedo perdeu o pai, respeitava muito seus tios, mas foi sobretudo sua mãe, Mariana Cândida, mulher digna e com muita consciência do dever público, quem o influenciou. Mesmo adulto, Chagas não ousava nem sequer fumar em sua presença – seria falta de respeito.

Fazenda Bom Retiro - Foto de Sidney de Almeida, feita em julho de 2017

          Iniciou seus estudos num internato jesuíta no município paulista de Itu, e completou-os em São João del Rey, no Colégio São Francisco, onde teve um excelente professor. Padre Sacramento ia para o campo junto com os alunos observar e classificar plantas e animais – atividade que logo despertou no garoto Carlos o interesse pelas ciências naturais. Terminado o colégio, a mãe, com sua peculiar determinação, decidiu que ele deveria seguir o curso de engenheiro de minas. Na verdade, Carlos Chagas queria ser médico, como dois de seus tios; mas, para satisfazer Mariana Cândida, cedeu na escolha. Foi reprovado nos exames vestibulares. Na mesma época, adoeceu – alimentando-se mal, teve, ao que parece, carência de vitaminas – e voltou para casa. Tratou-o um dos tios médicos, e decerto as longas conversas que tiveram reforçaram em Carlos a vontade de seguir medicina. O tio e o avô encarregaram-se de convencer a mãe. Mariana levava mais fé na engenharia – coisa objetiva, "concreta" – do que em cuidar de doentes, mas acabou concordando.

          Carlos Chagas foi aprovado para a então Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que começou a cursar em 1897. Não conhecia o Rio, mas vários amigos, mineiros como ele, viviam na cidade. Um primo, Augusto das Chagas, era inclusive deputado federal.

          Foi morar em uma pensão para estudantes na Tijuca, bairro aristocrático, muito bonito e arborizado. Descobriu logo, porém, que no Rio de Janeiro daquela época a Tijuca era uma exceção: no Catumbi, no Rio Comprido, na Lapa, as casas eram miseráveis, as condições de higiene, péssimas – as doenças ali campeavam. Mas, embora fosse uma época de grande agitação política, Carlos Chagas não se engajou em nenhum partido, tampouco aderiu, como era moda entre os jovens de sua idade, ao pacitivismo que, como vímos na história de Oswaldo Cruz, transformou-se no, Brasil, em uma forma de articulação política. Que a Carlos Chagas não interessava. Pretendia dedicar-se apenas à medicina.

Na Faculdade

          O estudo da medicina era uma coisa solene. Os alunos iam às aulas de terno, colete, colarinho duro e gravata – o que, no tórrido clima do Rio, era um suplício. Os professores vestiam com mais apuro ainda: sobrecasaca ou fraque cinza, chapéu coco. Ou seja: imitavam os europeus, coisa que Oswaldo Cruz também fez ao votar de Paris. Chegavam à faculdade em elegantes caleches (carruagem de quatro rodas e dois assentos, puxada por uma parelha de cavalos), entravam no auditório – onde já estavam os alunos – por uma porta especial. As aulas eram verdadeiras conferências proferidas em tom doutoral. Muitos dos catedráticos eram famosos: Chapôt-Prevost , professor de Histologia (a ciência que estuda os tecidos) e conhecido cirurgião, celebrizou-se com a dificílima operação em que separou gemêas xipófogas, unidas pelo esterno (o osso no centro do peito). Também famoso era Miguel Couto (1865-1934), grande clínico e também mais tarde político, de quem Chagas se tornou discípulo; Couto mostrava-lhes casos de doentes e orientava-o nas leituras médicas. Um conselho foi particularmente útil: as recomendações para conhecer as obras de Claude Bernard e Louis Pasteur. Esses dois cientistas franceses marcaram a história da medicina.

          A propósito, Chagas era um grande leitor. Devorava as obras de José de Alencar, Bernardo Guimarães, Artur de Azevedo, Machado de Assis, e também de Alexandre de Herculano, Eça de Queiroz, Anatole France. Lia inclusive em francês, que dominava, e que era, o idioma da cultura universal, o equivalente ao inglês nos dias de hoje. E este vasto conhecimento, sem dúvida, ajudou muito em sua carreira. Um bom cientista é aquele que não apenas conhece o campo em que trabalha, a sua especialidade, mas tem também uma visão abrangente do mundo e da sociedade, coisa que bons escritores, como Machado de Assis, proporcionam.

          Além de Miguel Couto, um outro médico influenciou o jovem Carlos Chagas: Francisco Fajardo, especialista em malária, professor da Faculdade. Fajardo tomou a iniciativa de dar um curso sobre a doença; para isso, precisava de um auxiliar, alguém que soubesse preparar uma lâmina com sangue de pacientes, identificando, ao microscópio, o agente causador da malária. Descobriu, para a sua surpresa, que Carlos Chagas, entao no quarto ano de Medicina, cumpria perfeitamente tais tarefas. Aliás, Carlos era um estudante exemplar; não apenas no laboratório se saía bem, seguia com maestria também nas disciplinas clínicas. Trabalhou com dedicação assombrosa nas enfermarias da Santa Cruz. Fazia contínuos plantões, chegando, certa vez, a passar uma semana sem ir para a casa; acompanhava um colega enfermo de febre amarela, seu parente, que veio a morrer da doença. Entre os colegas, era conhecido como "estudante de duas velas". Naquela ocasião, estudava-se à luz de velas – duas, no caso de Carlos Chagas, o que significava um longo tempo de estudo. Só saía para passeios ao zoológico.

          Contudo, foi uma festa que lhe mudou a vida. A convite de Miguel Couto, participou numa reunião em casa do senador (por Minas Gerais, naturalmente), Fernando Lobo. Ali conheceu Íris, a filha mais velha do anfitrião, por quem se apaixonou. Numa época muito recatada como aquela, namorar não era fácil. Mas Carlos foi ajudado por Fajardo, que lhe trouxe um bilhete da moça: ela queria vê-lo, no domingo, no bonde que passava as quatro da tarde em frente a casa do senador. E foi o que Carlos fez: tomou o bonde para que Íris o visse, mesmo de longe. Esse namoro a distância durou algum tempo, muito prejudicado pela irregularidade do horário dos veículos, que eram puxados por inconfiáveis muares ou se atrasavam por causa das chuvas. A mãe de Íris também não se mostrava muito favorável ao romance. Carlos Chagas era ainda estudante, sem meios de ganhar a vida. Além disso, a racista Maria Lobo suspeitava de que ele, apesar de loiro e de olhos azuis, tivesse sangue negro. Íris, contrariada em seu amor, trancou-se no quarto, onde fez greve de fome. Os pais por fim consentiram no namoro, que por fim se transformaria, em 1904, em casamento.

          Em 1902, prestes a terminar o curso, Carlos Chagas encontrou um médico que encaminharia sua carreira. Naquela época, para receber o diploma, era necessário elaborar uma tese de doutoramento – uma exigência depois abolida, sobretudo pela má qualidade dos trabalhos apresentados. A conselho de Francisco Fajardo, procurou Oswaldo Cruz no Instituto de Manguinhos, por ele dirigido. Impressionado com o conhecimento e com a seriedade do jovem doutorando, Oswaldo sugeriu-lhe que estudasse a malária que era então, como ainda hoje, uma doença muito frequente e que causava numerosas mortes. Carlos Chagas começou a frequentar o Instituto. Hoje, o trajeto do centro do Rio até a sede do Instituto pode ser feito de ônibus ou carro, em pouco tempo. Naquela época, porém, o "único meio de transporte era uma lancha que saía do cais Pharoux (o Cais Pharoux ficava aproximadamente onde hoje são as adjacências da região da Praça XV; nas proximidades de onde está o Museu Histórico Nacional) às sete da manhã, regressando às dezoito horas. E Oswaldo Cruz fazia questão que o horário fosse cumprido rigorosamente.

Começando a carreira

          A tese foi defendida em 1903, e logo depois Oswaldo Cruz convidou-o para trabalhar no Instituto. Carlos, entretanto, achava que sua verdadeira vocação era cuidar de doentes; assim, pediu tranferência para o Hospital de Jurujuba, também do governo, onde internavam-se doentes portadores de peste bubônica – à época, uma doença muito comum. A o mesmo tempo, abriu consultório no centro do Rio. Recebia doentes que lhe eram enviados por Miguel Couto e por Salles Guerra, amigo de Oswaldo Cruz. Era um bom médico, mas não sabia cobrar; ao contrário, às vezes dava dinheiro aos pacientes para que comprassem os remédios por ele prescritos. Em consequência, a clínica não lhe cobria as despesas, mesmo porqque àquela altura já estava casado e tinha um filho.

          Foi então que ocorreu uma nova, e decisiva, virada em sua vida. A Companhia Docas de Santos estava realizando, em Itatinga, no litoral paulista, uma importante obra portuária – que se viu paralisada devido a malária que grassava entre os operários. Solicitaram a Oswaldo Cruz que indicasse um médico capaz de enfrentar a situação. Carlos Chagas – por causa, evidentemente, de sua tese sobre malária – era a pessoa talhada para isso. Àquela altura, já se conhecia bem o mecanismo de transmissão, e o plano de Carlos Chagas consistia basicamente em combater o mosquito transmissor da doença, o que foi feito com grande êxito: em três meses a epidemia estava praticamente controlada.

          Voltando ao Rio, Chagas foi convidado para trabalhar na equipe de Manguinhos, capitaneada por Oswaldo Cruz. Com notáveis cientistas – Rocha Lima, Arthur Neiva, Beaurepaire Aragão, Ezequiel Dias – e com a regular participação de pesquisadores europeus especialmente convidados, Manguinhos era a própria imagem da medicina científica no Brasil. Chagas colaborou especialmente com Max Hartmann, renomado especialista em protozoários, categoria na qual se enquadra o plasmódio, agente causador da malária. Também continuou com seu trabalho de campo, participando do combate à malária no vale de Xerém, de onde era captada a água para abastecimento do Rio de Janeiro.

A grande descoberta

          Em 1909, Chagas foi convidado para um trabalho que, em aparência semelhante aos que já havia executado, seria, na verdade, uma nova e grande oportunidade em sua vida dedicada à ciência.

          A Estrada de Ferro Central do Brasil participava de um grande projeto: unir, por ferrovia, o norte e o sudeste do Brasil, de Belém do Pará ao Rio de Janeiro. As obras, contudo, estavam paralisadas – por causa da habitual malária – na altura do vilarejo chamado Lassance, no sertão mineiro. De novo Oswaldo Cruz foi consultado; de novo indicou Carlos Chagas, que partiu para o local acompanhado de Belisário Penna, levando inclusive equipamento laboratorial.

          Em Lassance, Chagas encontrou numerosos casos de uma doença que nada tinha a ver com a malária. Muitas pessoas queixavam-se daquilo que chamavam de "baticum":palpitações, sensação de que o coração não batia normalmente. E não era imaginação. Havia mesmo muitos casos de insuficiência cardíaca, isto é, situações em que o coração falhava. E havia também casos de morte súbita, provavelmente pela mesma causa.

          Naquela época o diagnóstico que se fazia para casos assim era o de sífilis. Esta doença é causada por um germe chamado treponema, que se transmite pelo contato sexual. Nos estágios avançados, a doença ataca o aparelho cardio-vascular. Era muito freqüente, principalmente porque não havia tratamento - a penicilina, que é muito eficaz contra o treponema, ainda não fora descoberta. O número de casos era muito grande; "no Brasil é preciso pensar sifiliticamente", diziam os médicos. Em Lassance havia uma fonte evidente de contágio: as prostitutas que acorriam ao lugar para "atender" aos trabalhadores da estrada de ferro. Já a gente do lugarejo, desnutrida, enfraquecida pela malária, não parecia muito chegada ao sexo. E, entre essas pessoas, o número de doentes era muito grande.

          Esse fato chamou a atenção de Chagas e mostrou sua vocação – o verdadeiro cientista é aquele que não se deixa enganar pelas aparências, vai além e procura explorar todos os aspectos do fenômeno que está observando, inclusive, e principalmente, os mais intrigantes. Isso lembra, aliás, um famoso diálogo entre Sherlock Holmes e seu companheiro, doutor Watson. Sherlock Holmes é um personagem criado pelo inglês Arthur Conan Doyle, que além de escritor era médico, e exerceu a medicina numa época em que se valorizava bastante o raciocínio na prática clínica. O doutor muitas vezes agia como um verdadeiro detetive, buscando o vilão causador da doença. No referido diálogo, Holmes está conversando com Watson acerca de um crime e refere-se ao "curioso incidente" ocorrido à noite com o cão de guarda da casa que fora cenário do delito. "Mas o cão não fez nada", protesta Watson. "Isto é que é curioso", replica Holmes. De fato, o cão deveria ter latido à aproximação de alguém estranho. Por que não o fez?

          Essa mesma curiosidade assaltou Chagas. O senso comum apontava para a sífilis; mas, e se não fosse sífilis? Se fosse uma outra enfermidade? Uma outra doença? O que estaria causando? Como seria transmitida?

          Chagas estava às voltas com essa dúvidas, quando um engenheiro da estrada de ferro, Cantarino Motta, fez um comentário sobre a enorme quantidade de "barbeiros" no local. Barbeiro é a denominação para insetos semelhantes a percevejos; são bichos noturnos: de dia escondem-se nas frinchas e frestas das casas de taipa ou pau-a pique, à noite saem para picar os moradores, de cujo sangue se alimentam. Como as pessoas em geral estão cobertas, eles escolhem a face – daí o nome.

          Examinando ao microscópio o conteúdo do tubo digestivo desses insetos, Chagas fez uma grande descoberta: havia ali tripanossomos, um parasita composto de uma célula só. Na África, um certo tipo desse parasita causa a doença do sono, assim chamada pela sonolência decorrente do comprometimento do sistema nervoso central. Naquela época, essa moléstia estava em evidência; muitas regiões atingidas eram colônias de países europeus, que para lá mandavam seus pesquisadores.

          Ora, a doença de Lassance poderia ser causada por um tripanossomo. Chagas decidiu verificar experimentalmente, em macacos, a possível capacidade de esse parasita infectar mamíferos. Mas os sagüis da região, freqüentemente infectados, não serviam para isso. Enviou, então, a Oswaldo Cruz alguns barbeiros, pedindo que tentasse infectar os macacos do laboratório – o que Oswaldo fez. Vários dias se passaram, dias de espera ansiosa. E então chegou a mensagem de Manguinhos: um dos macacos adoecera. Chagas deveria ir a Manguinhos identificar o tripanossomo. Partiu imediatamente.

          "Quantas esperanças e quantas angústias lhe terão assaltado o espírito na longa viagem que empreendeu?", pergunta Carlos Chagas Filho no livro que escreveu sobre o pai. E era, de fato, uma longa viagem, com muitas baldeações e atrasos. Finalmente chegou. Oswaldo Cruz, tão ansioso como Chagas, mandara um automóvel buscá-lo na estação ferroviária, de onde imediatamente seguiu para o Instituto. Ali estava o macaco infectado, bastante debilitado. O cientista colheu o sangue e examinou ao micrscópio: encontrou o mesmo tripanossomo a que verificara nos barbeiros e nos macacos de Lassance, posteriormente denominado Tripanossomo cruzi, em homenagem a Oswaldo.

          A infecção de mamíferos pelo T. cruzi estava comprovada. E quanto à infecção de seres humanos?

          No dia 14 de fevereiro de 1909, foi trazida ao caramanchão onde Chagas às vezes atendia pacientes – consultório ali não havia – uma menina de nove meses, Berenice, que ele já conhecia e por quem nutria sincera afeição. A menina apresentava febre alta e inchume no rosto e no corpo. O caso não era parecido aos de outros doentes de Lassance; mesmo assim Chagas resolveu colher o sangue da doentinha. Examinou-o ao microscópio e ali estava o Tripanossomo cruzi. Era o primeiro caso em que comprovava a associação do parasito com a doença – e com isso Chagas completava um trabalho extraordinário, jamais realizado na medicina: ele descobrira uma nova doença, identificara o agente causador e o mecanismo de transmissão.

A repercussão

          O passo seguinte era divulgar a descoberta, o que Chagas fez em revistas nacionais e estrangeiras. A Academia Nacional de Medicina constituiu uma comissão de renomados médicos para ir a Lassance avaliar de perto o trabalho. Concluída a auditoria, reuniram-se num modesto jantar, à luz de lampiões, e foi ali que Miguel Couto propôs: a doença deveria receber o nome de Chagas, seu descobridor. Uma proposta que foi aceita por todos os membros da comissão.

          Sem demora a doença começou a ser identificada em outros países das Américas. Sucederam-se as homenagens, que culminaram, em 1912, com o Prêmio Schaudinn, uma espécie de Nobel da microbiologia, de cujo júri participaram os nomes mais famosos da área.

          Outro talvez ficasse curtindo a glória. Não Chagas. Ele era um cientista, a ciência era a razão de ser de sua vida. Naquele mesmo ano seguiu para a Amazônia acompanhado de uma equipe, a fim de realizar um levantamento dos problemas de saúde da região – trabalho iniciado pelo próprio Oswaldo Cruz. Um ano durou essa difícil missão, realizada em condições as mais precárias; muitas vezes dormia ao relento, em redes ou em camas improvisadas.

          Voltando ao Rio, foi convidado a ir à Argentina, onde sua descoberta era colocada em dúvida por ninguém menos que Rudolph Kraus, diretor do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires. Kraus alegava ter encontrado em regiões da Argentina barbeiros com tripanossomos – sem a paralela ocorrência de casos. Chagas ponderou que o parasito talvez ainda não tivesse se adaptado aos seres humanos, ou – hipótese mais provável – que os médicos não estivessem familiarizados com o diagnóstico da doença.

          Durante esta visita à Argentina ocorreu um incidente pitoresco. Chagas foi visitar o laboratório de Kraus e saiu de lá com um enorme sobretudo, que lhe chegava aos pés: era o sobretudo do próprio Kraus, que levara por engano. Chagas era o protótipo do cientista distraído, desses que até se transformam em personagens de anedotas. Uma vez, em sua própria casa, a empregada serviu-lhe um café. Ele tirou dinheiro do bolso e depositou-o na bandeja, "pagando" pelo café. Numa outra vez, recebeu a visita de um jovem médico que vinha, com a esposa, agradecer-lhe um favor e demorou mais que o habitual nessas visitas. Lá pelas tantas, Chagas, esquecendo que estava em sua própria casa, olhou as horas e disse à mulher: "Íris, está na hora de voltar para a casa". Mas sua distraçao chegou ao auge quando, numa cerimônia internacional em Bruxelas, recebeu do rei Alberto, da Bélgica, uma importante condecoração – esqueceu-a na mesa do banquete. Um ajudante-de-ordens do rei levou-a depois para o hotel.

          Neste episódios ele poderia estar sendo vítima de seu próprio inconsciente, como diz Freud. Afinas, raras coisas são piores do que uma visita chata – e talvez ele não valorizasse tanto assim a condecoração real (ou não valorizasse como devia o próprio trabalho).

Chagas, o administrador de saúde

          Voltando da Argentina, recebeu uma triste notícia: Oswaldo Cruz, que há tempos estava doente, piorara muito e falecera a 11 de fevereiro de 1917. Para Chagas, quemal conhecera o seu próprio pai, Oswaldo Cruz havia sido, mais que um mestre, uma verdadeira figura paterna. Ficou muito abalado. Mas, sendo o sucessor natural do grande sanitarista, naquele mesmo fevereiro foi nomeado para a direção do Instituto. Isso o obrigou a se afastar da pesquisa laboratorial; daí em diante seria, antes de mais nada, um administrador. E um administrador muito solicitado pelo governo.

          Já no ano seguinte eclodiu no país uma epidemia da tristemente famosa gripe espanhola (não se sabe bem por que assim foi denominada; parece que começou na Espanha, mas isso não é certo). Da Europa devastada pela Primeira Guerra, a doença alastrou-se pelo mundo, levada inclusive pelas tripulações de navios. No Rio de Janeiro, a doença fez logo numerosas vítimas. Numa tese do ano posterior, conta o doutorando Eduardo Imbassahy: "A população quase inteira tombou ao sopro terrível e fulminante que nos vinha das plagas ocidentais e, de um momento para outro, uma das mais alegres cidades do mundo surgiu silenciosa, erma e triste, com as ruas abandonadas, as casas fechadas, o comércio parado, os veículos imóveis". Não havia sequer condições para enterrar o grande número de mortos; presos da penitenciária faziam o serviço. Faltavam caixões, de modo que os corpos eram atirados em valas comuns, ou recolhidos por caminhões particulares que passavam pelas ruas, os motoristas gritando" "Tem cadáver aí?".

          Não havia vacina contra a doença, nem antibióticos para tratar suas complicações. Tudo o que podia ser feito era providenciar locais de atendimento e leitos hospitalares para os enfermos, tarefa da qual Chagas, designado pelo Presidente da República, Venceslau Brás, se encarregou. Era um trabalho essencialmente administrativo, mas muito difícil: Chagas, ele próprio doente, tinha também de cuidar de sua família, a esposa, gravemente enferma, e os dois filhos. Mas ele se saiu tão bem, que foi convidado por líderes políticos a candidatar-se ao senado. Recusou.

          Ainda nessa época, encarregou-se de organizar, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a cadeira de Medicina Tropical. "Medicina Tropical" é uma expressão que já não se usa mais (em Manaus existe o Hospital de Medicina Tropical), mas no século XIX e princípios do século XX gozava de prestígio, por uma razão mais política do que geográfica: "trópicos eram os lugares onde se desenvolviam arrojados empreendimentos colonialistas ou empresariais – mineração, exploração de produtos vegetais, construção de ferrovias e de grandes obras, como o Canal do Panamá. Doenças chamadas "tropicais", como febre amarela, malária, doença do sono, leishmaniose e outras, representavam um problema, tanto pelas vidas humanas que ceifavam, como pelos prejuízos econômicos que produziam. Com o fim dos impérios coloniais e com a constatação de que os micróbios não tinham preferência só pelos subdesenvolvidos, surgiu a expressão, cientificamente mais exata, doenças transmissíveis.

A glória – e a polêmica

          O prestígio de Chagas era enorme. Viajava pelo mundo todo, participando de congressos e reuniões científicas. Recebeu comendas e títulos, conferidos por vários governos, e foi convidado para o Comitê de Higiene (outro termo em desuso) da Sociedade das Nações, precursora da Organização das Nações Unidas, ONU, que tem como um de seus ramos a Organização Mundial da Saúde. Nessas viagens, ficou conhecendo expoentes da medicina mundial. Foi em Toronto que encontrou os médicos e fisiologistas canadenses Frederick Banting (1891-1941) e Charles Best (1899-1978) que, alguns meses antes de sua visita, haviam descoberto a insulina – uma revolução no tratamento do diabete. Coincidência: pouco depois, a própria esposa de Chagas revelou-se diabética e tratou-se, com sucesso, com a insulina de Banting e Best.

          Apesar desse prestígio, ou justamente por causa dele, Carlos Chagas se viu envolvido em polêmicas e incidentes desagradáveis. A primeira delas ocorreu na Academia Nacional de Medicina em 1922. Alguns membros da instituição – que congregava médicos famosos, mas tinha escasso papel no cenário científico – colocaram em dúvida o trabalho de Chagas. A doença por ele descrita não existiria, ou então seria um problema de saúde restrito à região de Lassance, atingindo no máximo algumas dezenas de pessoas. Essa polêmica estava associada, na verdade, a uma briga de poder e prestígio, mas Chagas saiu vitorioso, mesmo porque o tempo encarregou-se de mostrar que ele tinha razão.

          Outro incidente ocorreu quando voltava de uma viagem à Europa, em 1930. Mal o navio atracara, um oficial subiu a bordo e deu-lhe voz de prisão. Naquele ano ocorrera a famosa Revolução que conduziu Getúlio Vargas ao poder. Mineiro, Chagas dera apoio à Aliança Liberal, formada por políticos de seu estado e de São Paulo, que se haviam oposto ao movimento. Entretanto, o motivo de sua prisão (que durou poucas horas) não foi exatamente esse, mas a denúncia de um médico, um urologista que tinha como sócio um charlatão capaz, segundo afirmava, de curar a lepra, doença para a qual não havia tratamento eficaz naquele tempo. Chagas, na qualidade de Diretor de Saúde Pública, cargo também exercido por Oswaldo Cruz, mandar fechar o consultório do homem – que aproveitou a primeira oportunidade para se vingar.

          Chagas era criticado por vários motivos. Por exemplo, pelos três cargos que detinha. Austragésilo de Athayde, mais tarde presidente da Academia Brasileira de Letras e, à época, jovem jornalista, escreveu: "O dr. Chagas quer figurar em todas as folhas de pagamento do Tesouro Nacional: Diretor do Instituto de Manguinhos, Diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, professor de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina." O que não deixava de ser verdade, embora Chagas não recebesse como diretor do Instituto. Além disso, até há pouco tempo era comum que médicos trabalhassem em vários lugares mesmo no serviço público: a Constituição permitia.

          Da era Oswaldo Cruz, Chagas também herdou polêmicas. Uma: a vacinação anti-variólica obrigatória que ele, como seu mestre, defendia. A varíola era uma doença epidêmica da qual o mundo veio a se livrar no final da década de 1960 graças, exatamente, às campanhas de vacinação; naquele tempo, porém, ainda havia discussões a respeito. Dois tipos de argumento eram usados. Na Alemanha, onde a vacinação era obrigatória, dizia-se que a varíola tinha causado 140 mil mortos, uma meia verdade: a vacina era obrigatória, sim, mas só para militares, e os mortos eram civis. Quando a vacinação estendeu-se a toda população, a doença praticamente desapareceu. O outro argumento, já mencionado, era de ordem filosófica e política: a obrigatoriedade violentava a liberdade individual. Mas, observava Chagas, "os que aconselham o povo a rebelar-se contra a vacinação compulsória vacinam-se e fazem com que seus filhos sejam vacinados". Ou seja: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. De qualquer maneira, havia um certo ranço autoritário nessas medidas obrigatórias, e esta foi a causa da disputa em torno do Código Sanitário que Chagas, na linha de Oswaldo, estava propondo.

          É preciso dizar que, nesse meio tempo, a Diretoria Nacional de Saúde Pública se tinha transformado, em 1920, por decreto do presidente Epitácio Pessoa, em Departamento Nacional de Saúde Pública, o que representava mais autonomia e mais recursos. Na direção do Departamento, Chagas tomou dois tipos de medidas. Uma de caráter interno, criando Diretorias que deveriam se encarregar dos vários problemas de saúde pública: fiscalização dos alimentos, tuberculose, lepra, doenças venéreas. Eram atividades verticais; do Rio de Janeiro, o orgão encarregado controlava as ações executadas em todo o país. A vantagem disso era a ação unificada; a desvantagem, o fato de marginalizar estados e municípios, que se viam no papel de meros executores.

          A outra medida foi o Código Sanitário. Com 1194 artigos, o Código regulamentava – do ângulo da saúde pública – praticamente todas as atividades do ser humano. Dizia como as pessoas devem morar, como devem lavar a roupa, como devem construir as casas. De novo: do ponto de vista técnico e científico, o código tinha fundamento, mas a maneira como foi implementado acabou gerando protestos, inclusive e principalmente da imprensa, que o atacava quase com a mesma veemência despejada contra Oswaldo Cruz. Um dos artigos, por exemplo, proibia estábulos em áreas residenciais. Dizia-se que Chagas estava agindo em causa própria: queria eliminar um estábulo que existia perto de sua própria casa, na Rua Paissandu. Proprietários de estábulos, indignados, quase invadiram a residência dele.

          Problemas ainda maiores surgiram no final de sua gestão, em 1926. O primeiro deles foi um surto de febre amarela, resultado, segundo os opositores de Chagas, de um desleixo no combate à doença que, contudo, não havia sido erradicada. A erradicação de uma doença significa a não existência de casos. É diferente de controle da doença, situação na qual os casos existem, mas a saúde pública tem conhecimento deles e pode impedir a disseminação da doença. A febre amarela chegou, em alguns momentos, a estar próxima do controle, mas nunca foi erradicada. Portanto, poderia voltar – como aconteceu, e como tem acontecido recentemente.

          O segundo problema foi igualmente grave: um surto de varíola eclodiu quando Chagas estava em viagem. Regressando, ele investigou o problema e descobriu, para sua desagradável surpresa, que a vacina não funcionava por deficiências técnicas em sua preparação. Não hesitou: foi à imprensa e contou o que estava acontecendo. Mais uma prova de seu inabalável caráter.

          Morreu relativamente cedo, aos 54 anos, já transformado em uma figura lendária da Medicina e da Ciência no Brasil.


Carlos Chagas hoje
Crônica de Márcio Almeida
(Especial para a Gazeta de Minas)(1999)

    Comemoram-se, em nível nacional, a partir de maio, 90 anos da descoberta da doença de Chagas e o centenário da Fundação Oswaldo Cruz, numa promoção da Fiocruz, Centro de Pesquisa René Rachou e Associação Brasileira de Saúde Coletiva — Abrasco.

    Além das justas homenagens, o evento em si tem implicações sociais, políticas, econômicas, científicas e culturais que necessitam ser resgatadas. Há cerca de 18 milhões de pessoas infectadas pelo Trypanosoma cruzi na América Latina, de cujo contingente 6 milhões de portadores da doença só no Brasil. O que é pior: descoberta em Lassance, MG, em 1909, a doença de Chagas até hoje é incurável. Não existe, apesar de toda sorte de pesquisas competentes feitas no país e no exterior, um antídoto capaz de debelar de modo definitivo esse flagelo. Há, sim, um esforço continental para alcançar o controle da doença até a próxima década.

    Muito mais que história, a doença de Chagas é um fato científico vigente para o qual é imprescindível chamar a atenção à sua pertinência social contemporânea: a doença inviabiliza o trabalho de parte da população e as pesquisas mais recentes detectaram que o seqüenciamento do código genético do Trypanosoma cruzi determina as dificuldades para o desenvolvimento de uma vacina contra a tripanosomíase americana, denominação com que o cientista oliveirense chamava a doença por ele descoberta.

    Alguns aspectos dessa pertinência sócio-científica não poderão ficar à margem do conhecimento, justo na terra do cientista. E, para tanto, como cidadão oliveirense, como ex-Coordenador-Geral do Memorial Carlos Chagas, mediante comunicação da efeméride a mim feita pelo cientista Carlos Chagas Filho, tomei a iniciativa de apresentar à Selctur e à Casa de Cultura Carlos Chagas um projeto de caráter interativo, no qual propõe-se a realização de atividades locais conscientizadoras tanto do legado de Carlos Chagas quanto da importância atual da doença por ele descoberta.

    O projeto foi, conforme recomendação do próprio Dr. Carlos Chagas Filho, enviado a Dr. Paulo Gadelha, da Fiocruz e coordenador nacional do evento. Aprovado por este, pela Selctur e pela Casa da Cultura Carlos Chagas, buscou-se formalizar, junto aos órgãos municipais citados, uma comissão para assumir a responsabilidade de incluir a terra de Carlos Chagas no roteiro das comemorações, que serão realizadas também em Belo Horizonte, Bambuí e Lassance.

    A comissão vem sendo composta. O que se espera do evento em Oliveira? Inicialmente, um trabalho concomitante e coeso com a Fiocruz, sobretudo em nível da exposição, na Casa de Cultura, das seções e módulos previstos: ciência e saúde — da capital ao sertão; modernização, saneamento urbano e ciência pausteuriana; Minas Gerais: o cenário da descoberta; a ciência descobre o Jeca Tatu; o tema de uma vida; inseto, microorganismo e o homem; a ciência da doença de Chagas; as tarefas da ciência; além da disponibilização, pela Internet, de amplo conjunto de informações e documentos sobre a vida e a obra do cientista.

    Com a mesma relevância, e é este o projeto de minha autoria — resgatar, através do legislativo municipal e do deputado federal Eliseu Resende, junto ao governo Itamar Franco e em caráter definitivo, o Memorial Carlos Chagas, criado pelo decreto-lei n.º 8.479, de 1.º de dezembro de 1983, sancionado pelo ex-governador Tancredo Neves, mediante proposta do cardiologista e então deputado estadual Sílvio Mitre. Instituir concurso estudantil para o 2.º grau sobre o tema “A Importância Social, Política, Sanitária, Científica e Cultural da Doença de Chagas no Brasil e a Pesquisa Realizada no Mundo para Minimizar o Flagelo”. Propor à Secretaria Municipal de Educação um trabalho conjunto com entidades como IEF, Ibama, Sindicato dos Agricultores, SAAE, Rotary Clube, Lions Clube, maçonaria, igrejas, agentes culturais, imprensa, outros, e os segmentos docentes e discentes de 1.º e 2.º graus, objetivando a conscientização plena da importância do cientista Carlos Chagas e de sua descoberta. Inclui-se, nessa atividade, um trabalho performático-científico com os grupos de teatro Olha o Bicho, Protozoários Contadores de Casos e Abertura, em todas as escolas urbanas e rurais. Promover, através da Selctur/Casa da Cultura, um ciclo de conferências sobre a doença de Chagas e seu descobridor, com cientistas como Dr. João Carlos Pinto Dias e Dr. Paulo Gadelha, da Fiocruz. Promover, na Casa de Cultura, exposição de objetos do cientista Carlos Chagas, inclusive reprodução da cafua, do barbeiro e da Fazenda do Bom Retiro em esculturas do artesão Leonardo Leão.

O Carlos Chagas que ninguém conhece

    O cientista oliveirense não foi autor somente da descoberta da doença de Chagas, mérito sem dúvida que o tornou uma referência científica mundial. Em apenas 56 anos de vida (1878—1934), contra as adversidades da pobreza, da inveja e maledicência de próceres da classe médico-científica de sua época, de uma vida atribulada em condições muito precárias à pesquisa de campo realizada na Amazônia, na baixada santista, em Lassance e no Rio de Janeiro; da ingerência de políticos no seu trabalho e da campanha depreciativa de sua genialidade humilde impetrada por parte da imprensa “marrom”, sobretudo da década de 20, entre outras vicissitudes, Carlos Chagas realizou muito e seu legado impôs-se em todo o mundo e vige pela importância dos seus atos pessoais e sua lealdade pragmática ao juramento de Hipócrates.

    Chagas foi o precursor da medicina social no Brasil. Foi um competente homem de laboratório, um clínico com rara perspicácia no discernimento de diagnósticos, enfim, como ressalta com justiça seu filho, “um inovador na pesquisa protozoológica, na pesquisa biológica, no campo da saúde pública e no da administração hospitalar”.

    Com a utilização da queima de piretro, produto sulfúreo que elimina o mosquito alado, Chagas deu início à desinfecção domiciliária, originando o DDT que tornou possível a eliminação da malária em muitas regiões do mundo, descoberta reconhecida em 1923, em Roma.

    Ao descobrir o Trypanosoma cruzi, Chagas detectou também um outro protozoário denominado Pneumocystis carinii, alojado nos pulmões dos pequenos macacos. Estava aí a proto-descoberta da causa da Aids (isso em 1909!), pois o pneumocystis carinii produz uma pneumonia de células plasmáticas intersticiais, analisa Chagas Filho, tornando-se parasito significativo no organismo ao promover a síndrome de imunodeficiência adquirida produzida pelo vírus HIV.

    Carlos Chagas, como diretor do Instituto Oswaldo Cruz (1917—34) concluiu o hospital daquela entidade destinada à internação de casos de doenças infecto-contagiosas e para lá levou os maiores nomes médico-científicos do país. Chagas foi o primeiro brasileiro a ser distinguido com o título Honoris Causa, concedido pela Harvard University, em 1921. Em 1925, anfitrionou em Manguinhos a visita de Albert Einstein. Recebeu distinções em reconhecimento ao seu trabalho científico-social também da rainha Elisabeth, da Inglaterra, e do rei Alberto da Bélgica. O cientista foi responsável pelo debelamento da gripe espanhola que matou centenas de milhares de brasileiros, chegada ao país em 1918 a bordo do navio britânico S. S. Demerara.

    De grande mérito sanitário foi também a Reforma Carlos Chagas empreendida quando na direção do Departamento Nacional de Saúde Pública, ocasião em que Miguel Pereira cunhou a expressão — “o Brasil é um grande hospital” —, tamanha a proliferação de doenças da miséria no país.

    E foi Chagas que, com apoio irrestrito da Fundação Rockfeller, criou a Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1925; mas antes, desde 1916, o cientista havia inaugurado, com o governo brasileiro, os primeiros postos de profilaxia rural em diversas regiões do país.

    Epitácio Pessoa, em 1923, contra o movimento anti-chaguista caracterizado por “ciumada positivista”, do qual participaram Figueiredo Vasconcellos, Parreiras Horta, Afrânio Peixoto, Astregésylo de Athaíde e na Argentina Rudolf Kraus, escreveu: “A mediocridade não perdoa ao talento como a treva não perdoa à luz”.


Carlos Chagas: Prêmio Nobel em 1921
por João Carlos Pinto Dias (1999)
Pesquisador Titular da FIOCRUZ (C.Pesquisas René Rachou, de Belo Horizonte)

Nascido em 1878, em Oliveira, Minas Gerais, CARLOS RIBEIRO JUSTINIANO DAS CHAGAS constitui-se numa das maiores expressões da ciência brasileira e mundial de todos os tempos. Contemporâneo de OSWALDO CRUZ, em 1903 já se destacava em fundamentais trabalhos sobre a epidemiologia e o controle da malária, vindo a descobrir praticamente sozinho, em 1909, uma nova e terrível doença, a tripanossomíase americana, que por sugestão de Miguel Couto ficou internacionalmente conhecida como "Doença de Chagas" (Chagas Filho 1968, Coura 1997, Stepan 1976). Este mal acomete 18 países latino-americanos e ameaça 70 milhões de indivíduos, estimando-se que dele padeçam entre 16 e 18 milhões de pessoas, do sul dos Estados Unidos à Patagônia. (Dias e Coura, 1997, WHO 1997)

          De maneira excepcional, Carlos Chagas descobre a enfermidade e a descreve praticamente sozinho, um feito sem par na Medicina. Pesquisa seus aspectos clínicos, epidemiológicos, parasitológicos, anátomo-patológicos e políticos, de maneira praticamente perfeita para os recursos da época, legando à humanidade uma lindíssima obra científica, atrelada a invejável compromisso ético.(Coura 1997, Perleth 1997). Chagas, como Oswaldo, foi admirado e invejado , tendo sido laureado com inúmeras distinções e tendo enfrentado várias disputas científicas com médicos e investigadores da época que o invejavam ou simplesmente não tinham formação ou competência para avaliar suas idéias, realmente muito avançadas para então. (Stepan 1976). Em particular, não se compreendiam as observações perfeitas sobre a cardiopatia crônica da doença, por Chagas minuciosamente descritas e interpretadas num momento em que tudo dependia da visão direta do parasito e em que as noções básicas de Imunologia estavam apenas engatinhando (Dias 1988, Laranja 1949, Laranja e cols. 1956)

          Um destes episódios se passou na Academia Nacional de Medicina, onde Chagas foi duramente contestado por Afrânio Peixoto e alguns outros acadêmicos, uma disputa histórica que durou de 1920 a 22, terminando com a plena vitória de Chagas.(Chagas Filho, 1968). Não sem seqüelas, é verdade, pois a pendência muito aborreceu Chagas e, pior que isto, colocou a doença de Chagas, à época, sob suspeita e com isto foram sensivelmente reduzidos o seu estudo e o seu ensino nas universidades brasileiras. Aliás, é da maior importância ressaltar a tenacidade de Chagas (muito mais que sua tristeza) mantendo-se ativo e trabalhador apesar dos lamentáveis fatos da Academia.

Prêmio Nobel
          Neste período, entre outras mazelas, um episódio pouco comentado merece destaque: negaram-lhe o Prêmio Nobel. A descrição do fato se coloca a seguir, pela visão do historiador argentino Sierra-Iglesias (1990, pág. 225): "En 1921 era propuesto para el Premio Nobel de Medicina, y cuando todo presumía que le sería otorgado, inconfesables influencias se interpusieron. El Instituto sueco se había dirigido a organismos científicos del Brasil recabando datos sobre su personalidad, sobre su obra, pero algunos sus propios compatriotas (increíblemente, entre ellos algunos no médicos, por lo tanto primariamente inhabilitados para juzgar el descubrimiento de la tripanosomiasis), lo desaconsejaron, siendo este año declarado desierto este codiciado lauro mundial".

          O arrazoado brasileiro que apresenta Chagas à Academia Sueca, se encontra na FIOCRUZ e contempla os méritos e a genialidade de Chagas, a par da enorme transcendência de sua descoberta para a humanidade, em especial para os povos latino-americanos. (Anônimo, 1920). O andamento do processo e as razões para a não contemplação de Carlos Chagas constituem um mistério, não havendo outros registros em Manguinhos e junto à família de Carlos Chagas. Não obstante, é muito coerente a informação de Sierra Iglesias com a proposta/indicação de Chagas, sendo muito provável que esteja correta a informação argentina. É bastante possível, sem dúvida, que ao pedido sueco, autoridades brasileiras tenham desaconselhado o laureamento, na época, diretamente por ação dos detratores ou, por insegurança diante da pendência em curso.

          Em sendo verdadeiro, este episódio apresenta a maior importância no cenário da ciência mundial e latino-americana. A concessão do Prêmio Nobel, de um lado, tem por objetivo laurear benfeitores da humanidade com isenção e justiça. Ao país ou região contemplados, por outro, o mérito que transcende o laureado, evidenciando as estruturas e o terreno fértil que viabilizaram a conquista. Hoje há unanimidade sobre o valor de Carlos Chagas, não pairando dúvidas de que tenha chegado ao nível de importância e de excelência dos demais premiados. A ser verdade o episódio, é definitivamente lamentável o ocorrido, que privou o Brasil de seu primeiro Prêmio Nobel (até hoje teria sido o único) e a Chagas de mais um merecido galardão. Seria possível uma reconsideração, uma outorga a posteriori ?

          Em 1999 se comemora, através da Fundação Oswaldo Cruz e em parceria com a OMS e inúmeras entidades nacionais e internacionais de Ciência, o noventenário da imortal descoberta. Expedientes estão em curso para verificar a realidade dos fatos que permeiam este não recebimento do Prêmio Nobel por Carlos Chagas, especialmente junto à Academia e às Autoridades de Estocolmo. Na presente nota, além desta primeira informação, se solicita - a todos aqueles que possam colaborar - suas idéias, empenho e eventuais ações que permitam elucidar os fatos e contribuir para que se faça justiça ao grande brasileiro .


Fonte: www.datasus.gov.br

Referências:

Anônimo, 1920. Exposition of reasons for the presentation of Dr. Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas as a candidate for the Nobel Prize in Medicine. Rio de Janeiro, Manguinhos, 8 p.

Chagas C.R.J., 1910. Aspecto clínico geral da nova entidade mórbida produzida pelo schizotrypanum Cruzi. Nota previa. Brazil-Medico 27: 263-265.

Chagas Filho 1968. Histórico sobre a doença de Chagas. in Cançado J.R. (Ed.) Doença de Chagas. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, p. 5-21.

Coura J.R, 1997. Síntese histórica e evolução dos conhecimentos sobre a doença de Chagas. In Dias JCP e Coura JR (organs.) Clínica e Terapêutica da doença de Chagas. Uma abordagem prática para o clínico geral. Rio de Janeiro: FIOCRUZ Ed., p. 469-486.

Dias J.C.P. 1988. Reseña histórica de los conocimientos sobre la enfermedad de Chagas y reflexiones sobre algunos aspectos políticos y socio-económicos de la endemia en el contexto latinoamenricano. Revista de la Federación Argentina de Cardiologia, 17: 121-135.

Dias J.C.P. e Coura J.R., 1997. Epidemiologia. In Dias JCP e Coura JR (organs.) Clínica e Terapêutica da doença de Chagas. Uma abordagem prática para o clínico geral. Rio de Janeiro: FIOCRUZ Ed., p. 33-66.

Laranja F.S., 1949. Evolução dos conhecimentos sobre a cardiopatia da doença de Chagas. Revisão crítica da Literatura. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 47: 605-669.

Laranja F.S, Dias E, Nóbrega G.C & Miranda A., 1956. Chaga"s Disease. A clinical, epidemiologic and pathologic study. Circulation, 14: 1035-160.

Perleth M, 1997. The discovery of Chagas’ disease and the formation of the early Chagas’ disease concept. Pubbl. Stn. Zool. Napoli II, 19 (2): 211-236.

Sierra-Iglesias J.P., 1990. Salvador Mazza - su vida y su obra - redescubridor de la enfermedad de Chagas. San Salvador de Jujuy, Universidad Nacional de Jujuy, 527 p.

Stepan N., 1976. Gênese e evolução da ciência brasileira. Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova Ed. 188 p.

W.H.O., 1997. Chagas disease: interruption of transmission, Brazil. Weekly Epidemiological Record, 78:1-5.

em http://www.submarino.net/cchagas/art.htm

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